O dia 20 de Maio de 2000 foi uma data triste para o mundo da música, que perdeu um de seus maiores expoentes: Jean-Pierre Rampal. Mais triste ainda para nós flautistas, principalmente para aqueles que, como eu, tanto o admiravam. Neste aniversário de quatro anos de sua morte, achei que seria uma ótima oportunidade para lembrá-lo, e contar um pouco mais sobre sua trajetória. Tenho certeza de que todos os flautistas o conhecem de uma forma ou de outra, ou pelo menos já ouviram falar dele e de suas célebres gravações, mas também sei que muitos desconhecem detalhes sobre sua conturbada vida e sua extraordinária carreira.
Rampal foi um dos maiores flautistas de todos os tempos, um dos artistas clássicos de maior sucesso e popularidade e certamente com a maior discografia (mais de 300 gravações!). Sua sonoridade cristalina, técnica extraordinária e grande sensibilidade musical o fizeram um dos maiores solistas de flauta de todos os tempos. Sua carreira internacional o levou aos quatro cantos do mundo e a qualquer cidade onde existisse uma orquestra que pudesse acompanhá-lo, chegando a realizar mais de 200 apresentações por ano (quase uma a cada dois dias), muitas vezes viajando longas horas de avião e tendo apenas alguns minutos para os ensaios.
Ele foi também um pioneiro, quando iniciou sua carreira era quase impensável que um flautista viajasse para se apresentar com uma orquestra de outra cidade. O concerto de Mozart era considerado “propriedade” do 1º flautista da orquestra, que vez ou outra se apresentava como solista, mas agora era um forasteiro quem estava chegando para solar o concerto. Rampal não raras vezes enfrentou situações embaraçosas com estes flautistas, mas que hoje são todos seus amigos. Sua carreira brilhante também abriu portas para que muitos outros flautistas seguissem seu caminho. Rampal elevou a flauta a uma categoria até então restrita aos instrumentos didos "nobres", ou “solistas”, como o piano, o violino e o violoncelo, e devemos todos nossa gratidão a ele.
Recitais de flauta e piano também eram raros, e seu primeiro recital oficial na Sala Gaveau de Paris em 1949 causou grande repercussão. Rampal também foi responsável por grande ampliação do repertório de flauta, redescobrindo, editando e gravando uma quantidade enorme de obras até então inéditas ou desconhecidas, atraindo também a atenção de inúmeros compositores contemporâneos que viam na flauta agora um instrumento de grandes possibilidades artísticas.
Em 1990, Rampal publicou sua autobiografia "Music my Love", uma leitura obrigatória para todos os flautistas.
“Ah, Jean-Pierre, se ao menos você tivesse estudado mais...”(Joseph Rampal)
Com esta frase, que seu pai repetia sempre para ele, Rampal inicia sua autobiografia nos intrigando com este “contra-senso”: como poderia seu pai achar que o maior flautista do mundo não tenha estudado o bastante?
A frase talvez se justifique quando nos damos conta de que Rampal teve uma formação musical pouco convencional, quase informal, e que embora ele se interessasse pela flauta desde muito jovem, seus pais não desejavam que ele seguisse a carreira, direcionando-o para a medicina. Rampal de fato seguiu para a medicina, mas o mundo estava em conflito, era a 2ª Guerra Mundial, e diversos acontecimentos o fizeram oscilar entre a medicina e a música. À medida que lemos e acompanhamos os eventos em sua vida temos a impressão de que o destino parece ter conspirado e colaborado para que ele abandonasse a medicina e se tornasse um dos maiores flautistas de todos os tempos.
Rampal era filho de um excelente flautista e professor de Marselha, Joseph Rampal, a quem Moyse se referiu certa vez como um dos maiores talentos de sua geração. Mas isto não facilitou as coisas para o jovem Jean-Pierre: seus pais queriam mais segurança para seu futuro e fizeram de tudo para evitar que ele seguisse a carreira de músico. Seu pai o proibiu de estudar flauta e sua mãe queria que ele se tornasse médico. Seu pai somente o autorizou a aprender a tocar a flauta aos 12 anos, mas o fez por razões práticas e necessidades pessoais, pois ele estava com um aluno a menos no Conservatório de Marselha. Ajudou-o então a se preparar para o exame de entrada, onde ingressaria em 1934. Joseph era um professor muito exigente e austero, o que fez com que Jean-Pierre tivesse uma formação técnica muito rígida e sólida. Aos 14 anos recebeu o primeiro prêmio do Conservatório de Marselha.
Em 1939, aos 17 anos, Rampal já se estabelecia como um músico local e tocava segunda flauta para seu pai na Orquestra de Concertos Clássicos de Marselha. Os rumores da guerra aumentavam e a comida se tornava cada vez mais difícil de encontrar. Em setembro, após Hitler invadir a Polônia, Inglaterra e França declaram guerra à Alemanha. Em 1940, os alemães invadem a França e ocupam Paris. No momento em que isso ocorre, os músicos de Paris se mudam para Marselha, um território então considerado desocupado pelos alemães. As orquestras Nacional da França, da Radio e Lírica se mudam e da noite para o dia a cidade recebe mais de 300 músicos e renomados artistas, entre eles Lily Laskine (harpista que fez parceria com Rampal durante 35 anos) e o quarteto Pascal.
Apesar de seus trabalhos na orquestra, Rampal acaba seguindo a vontade de sua mãe e inicia seus estudos em medicina. Naquele ano, todos os jovens franceses são recrutados para o serviço militar e têm de passar nove meses nos campos de treinamento. Rampal é enviado à Nyons, e obrigado a realizar trabalhos forçados. Mas logo surge uma possibilidade de se livrar do trabalho pesado, e esta possibilidade vem através da música! Rampal é escolhido para a posição de primeira flauta na recém criada orquestra do campo de treinamento.
Mas sua verdadeira chance de escapar do campo vem, novamente com a música, quando seu colega e clarinetista da orquestra o convence a se juntar a ele num pedido de autorização para fazerem o exame de admissão do renomado Conservatório de Paris. Rampal não estava muito entusiasmado com a idéia de início, pois já havia se decidido não seguir a carreira musical, mas a possibilidade de poder sair do campo e poder passear por Paris o seduziu mais que a idéia de seguir uma carreira de músico profissional naquele momento.
Quando seu pai soube que faria o exame para o Conservatório, foi ao seu encontro e levou sua flauta Louis Lot de prata ajudando-o a se preparar, mesmo contrariado, afinal era o nome e a reputação dos “Rampal” que estaria em jogo. Rampal foi aceito já na primeira fase do concurso, mas não pode se matricular e teve de retornar ao campo porque não tinha autorização para ficar em Paris. Ao voltar recebeu uma notícia assustadora: de que os jovens nascidos em 1921 já haviam sido enviados à Alemanha, e que chegara a hora dos nascidos em 1922, seu ano. Mais uma vez, por sorte e graças à música, um de seus melhores amigos, Christian, que era filho de um influente médico, conseguiu para ambos uma carta com selo oficial requerendo ao comandante do campo que eles fossem liberados para fazer o exame para a Escola Militar de Medicina em Lyons. Surpreendentemente, o pedido foi aceito por um dos funcionários subalternos e não foi questionado pelos seus superiores. De posse do documento, Rampal e Christian saíram imediatamente e seguiram à pé 6 Km até a estação de trem, pois haviam perdido o último ônibus. De trem, seguiram a Marselha, onde pela manhã seus pais os esperavam já com os telegramas do campo de treinamento, de onde haviam “fugido”, exigindo seu retorno imediato.
Mas era Natal, e em Marselha eles estariam seguros pelo menos por algum tempo. Mas para não ser preso como desertor, Rampal decidiu que o melhor a fazer era requerer sua vaga no Conservatório de Paris, onde poderia ficar de forma quase anônima. Seu álibi agora seria a música, e sua carreira de médico teria que aguardar.
Como aluno da classe de Gaston Crunelle, Rampal estudou intensamente os Caprichos de Paganini e se preparou durante apenas quatro meses para o concurso anual do Conservatório. A peça especialmente composta para o concurso daquele ano de 1944 era "Le Chant des Linos" de A. Jolivet. Rampal, tocando de memória, recebeu o primeiro prêmio.
Mas ficar em Paris ainda era muito perigoso, e Rampal agora estava preocupado com seus pais em Marselha, onde os alemães agora estavam bombardeando. Decide então voltar a Marselha, e ainda incerto sobre qual carreira deveria seguir, retoma seus estudos de medicina, passando nos exames para o terceiro ano juntamente com seu amigo Christian. A França retoma o controle de Marselha em agosto de 1944, e logo a guerra chega ao fim com a vitória dos aliados.
Rampal já está para se formar em urologia e já faz estágios, auxilia em cirurgias, mas seus amigos do Conservatório de Paris, impressionados com seu talento, não o esqueceram e não querem desistir dele assim tão fácil. Em 1945, através da indicação de seus amigos Rampal é convidado à solar o concerto de Jacques Ibert com a Orquestra Nacional da França, em transmissão ao vivo pela radio. Rampal deixa Marselha para Paris prometendo à sua mãe que voltará aos estudos de medicina logo após este concerto. Mas sua performance de um dos concertos mais difíceis para flauta o coloca em grande evidência e o leva a assinar seu primeiro contrato de gravação: o quarteto para flauta de cordas de Mozart em ré maior com o Trio Pasquier em 1946.
Deste ponto em diante, Rampal nunca mais largou a música, e em Paris reencontrou seus amigos do conservatório e formou parcerias importantes com os pianistas Pierre Barbizet, Robert-Veyron Lacroix (durante 35 anos) e o Quinteto de Sopros Francês. Com eles participou de inúmeras gravações e transmissões de radio em premières que impulsionaram sua carreira internacional.
Em 1958, entrou para a Orquestra da Ópera de Paris e iniciou sua carreira internacional com grande triunfo apresentando entre outras obras a recém composta Sonata de F. Poulenc. Compositores como Boulez, Jolivet, Feld e Penderecki entre outros, também lhe dedicaram ou presentearam com suas obras que Rampal muitas vezes as apresentou e gravou em primeira audição mundial.
Também em 1958, Rampal começou a lecionar anualmente na recém fundada Academie d’été de Nice, onde ensinou a elite da flauta mundial por mais de 20 anos. Apontado professor do Conservatório de Paris em 1969, Rampal ajudou a criar uma geração de jovens virtuosos. Alguns de seus alunos foram Alain Marion, Ransom Wilson, András Adorjan, Robert Stallman, Philippe Pierlot, Shigenori Kudo, Patrick Galois, Philippe Bernold, Andréa Griminelli e Jean-Louis Beaumadier.
Talvez a grande “marca registrada” de Rampal tenha sido sua famosa flauta de ouro de 18 quilates, com a qual se apresentava, ficando logo conhecido do público como o "flautista da flauta de ouro", do "som dourado". Isto certamente ajudou sua carreira, ainda mais numa época em que pouquíssimos flautistas se davam ao luxo de possuir uma flauta de ouro. Rampal mais uma vez contou com a sorte para encontrar este verdadeiro tesouro: em 1948, alertado por um amigo, encontrou esta raríssima flauta de 1869 num antiquário, confirmando então boatos de que Louis Lot, o famoso construtor francês do século 19, havia produzido certa vez uma flauta de ouro que havia sido enviada à China. Mas era o pós-guerra, todos lutavam para sobreviver, e a flauta de ouro estava desmontada e pronta para ser derretida. Rampal só consegui salvá-la após prometer ao dono do antiquário o equivalente ao seu peso em ouro, o que conseguiu com a ajuda de seu sogro e juntando jóias de toda a família. Rampal levou a flauta para casa ainda em pedaços dentro de uma sacola, sem saber se havia feito bom negócio e se a flauta estava completa com todas as partes. Seu pai ficou eufórico quando viu a flauta, e após trabalhar durante toda a madrugada na sua montagem, pela manhã a flauta já estava pronta e tocando.
Rampal usou esta flauta por 11 anos, e só a “aposentou” quando recebeu uma flauta de ouro da firma americana William S. Haynes, em 1958. Costumava viajar levando ambas, até que em 1985, quando viajava de Los Angeles para Boston, sua valise foi roubada em Los Angeles. Rampal fazia o “check in” no aeroporto e colocou momentaneamente sua valise no chão enquanto dava a passagem para a atendente, quando se distraiu alguém passou e levou sua valise com as flautas. A polícia foi acionada imediatamente e iniciou as buscas pelo aeroporto, mas Rampal tinha um concerto no dia seguinte em Boston e não pôde esperar que a polícia encontrasse suas flautas. Ligou para seu amigo Lewis Deveau dono da fabrica William S. Haynes e conseguiu uma flauta de ouro emprestada, que eles estavam terminando de fazer para um cliente. Na madrugada do dia seguinte, a polícia ligou avisando que havia encontrado sua valise e pedia para que Rampal confirmasse se havia em sua valise um estojo com seis pedaços de “canos” dourados. Rampal, mesmo aliviado pela notícia, teve de usar para o concerto daquela noite a flauta recém terminada pela Haynes, a qual acabou comprando. (Rampal tinha ao todo quatro flautas Haynes de ouro, com pé em dó, pé em si e com afinações diferentes: 440, 442 e 445). Depois deste susto e certo de que sua Louis Lot de ouro seria insubstituível, Rampal passou a deixá-la guardada em um cofre em Paris. Uma de suas últimas gravações com esta flauta foi no Concerto de Brandemburgo Nº5 de J. S. Bach com a Academy of St. Martin-in-the-Fields, sob a regência de Sir Neville Marriner.
Rampal foi um "bon vivant", gostava de música, vinhos, de comer bem e de se apaixonar. Tinha muitos amigos, era carismático e carinhoso com todos que o abordavam, um verdadeiro “gentleman”. Apesar de tudo, era uma pessoa simples, que tocava com humildade e honestidade e que colocava a música em primeiro lugar. Quem o assistiu ao vivo presenciou seu amor pela música e jamais esquecerá a enorme emoção com que tocava. Era como se tocasse diretamente para cada um dos presentes. Ao final, voltava diversas vezes e tocava vários extras enquanto a platéia quisesse. Com seus alunos, era atencioso, quase paternal, não admitindo disputas entre eles. Procurava estimular o melhor de cada um, e lhes ensinava como amar e ser feliz com a música.
Suas incontáveis gravações são surpreendentes: no auge de sua carreira chegou a gravar mais de 10 discos por ano. Gravou quase todo o repertório de flauta, repetindo algumas vezes quando surgia um novo formato: no início eram 78 rotações, depois 33 (mono e estereofônico) e finalmente o CD digital. Ganhou várias vezes o “Grand Prix du Disque”. Sua gravação de maior sucesso comercial foi sem dúvida a “Suíte para Flauta e Piano Jazz Trio” de Claude Bolling, de 1975, seu primeira incursão pelo jazz, que vendeu mais de um milhão de cópias e ficou mais de 10 anos consecutivos entre os discos mais vendidos do mundo.
Mas Rampal sempre frisou que nunca foi um “escravo da flauta”, e que estudar exaustivamente pode tirar o prazer de tocar. Segundo ele, o artista deve preservar o frescor e a vitalidade na música, de maneira que sempre que se toca uma obra, mesmo que seja pela centésima vez, deve-se tocá-la como se a estivesse descobrindo pela primeira vez, e como se estivesse cheio de alegria pela sua descoberta. Sem dúvida, a espontaneidade e o frescor de suas interpretações foram algumas das características que consagraram Rampal como intérprete, atraindo multidões para seus concertos.
Direta ou indiretamente, Rampal influenciou quase todos os flautistas de seu tempo. Costumava contar que se surpreendia quando viajava para lugares distantes e encontrava seus fãs com seus discos nas mãos pedindo seu autógrafo.
Sua parceria com a “International Music Company ” produziu mais de 200 edições que foram mundialmente divulgadas. Em suas masterclasses pelo mundo, era comum ouvir seus próprios fraseados e ornamentos reproduzidos pelos flautistas locais.
Rampal recebeu muitas honras durante sua carreira: o Prêmio “Leonie Sonning”, o “Prix du Président de la Republique” e o prêmio “Académie Charles Cros” pela sua discografia. Recebeu também os títulos de “Commandeur de la Légion d'Honneur”, “Officer des Arts et des Lettres” e “Commandeur de l'Ordre National de Mérite”.
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